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PERCEPÇÃO

Bem vindes ao décimo quarto post!
Estamos chegando ao final do projeto. Sendo assim, antes de partir pra criação em si, é hora de uma auto-verificação perceptiva, ou seja: perceber o que mudou na percepção individual depois de ter tido acesso a esses conteúdos abordados no decorrer do projeto.

Dia 14: Texto

EXERCÍCIO

Proposta

A proposta aqui é simples: rever os mesmos vídeos observados no primeiro exercício, observando as notas tomadas. 

O objetivo é perceber no vídeo os fundamentos abordados no projeto, verificando no que colabora para os sentidos do vídeo essas novas percepções, buscando relações entre os elementos.


Lembrar de observar:

  1. sobre o corpo: planos de movimentação (alto, médio, baixo → e como a câmera se relaciona com eles); padrões de movimentos; deslocamentos no espaço; mudanças de velocidade; gestos; acentos (se é um movimento mais fluido ou mais “travadinho”), etc.

  2. mise-en-scène: onde a cena acontece, como é o cenário, como a(s) personagem(s) se relaciona com ele; onde há luz, o que ela transmite; quais cores são utilizadas e como elas conversam; etc.

  3. sobre a câmera: onde está posicionada, como são os deslocamentos; a duração dos planos, o que ela transmite; como o ponto de vista interfere na narrativa; etc.



O nosso exemplo da prática não será em vídeo, mas sim por escrito. Vou deixar aqui breve análise do vídeo ANIMA, de Thom York e Paul Thomas Anderson.

FICHA TÉCNICA:

Título do filme analisado: “Anima” 

Direção e roteiro: Paul Thomas Anderson 

Trilha sonora: Thom Yorke e Nigel Gondrich

Coreografia: Damien Jalet

Fotografia: Darius Khondji

Produção: Sara Murphy, Paul Thomas Anderson e Erica Frauman

Lançamento Netflix: 27 de junho de 2019

País: Reino Unido 

Duração: 15 minutos 

Elenco: Thom Yorke, Dajana Roncione, Iceland Dance Company e Göteborgsoperan Dance Company

Direção de fotografia: Darius Khondji 

Edição: Andy Jurgensen

Projeções: Tarik Barri

CHAVES DE OBSERVAÇÃO:

  • desenvolvimento coreográfico;

  • mudança dos cenários;

  • iluminação das cenas;

  • como isso se relaciona com a trilha sonora.

Começo, então, com um panorama geral do one-reeler*. Falando sobre encontrar o amor em meio  a uma sociedade industrial que luta contra o tempo e a individualidade, a narrativa  frouxa se desenrola sobre o processo de união das personagens protagonistas ─ ao mesmo tempo que os corpos coreografados vão relaxando. Além disso, esse desenvolvimento está entrelaçado a cenários distópicos e uma atmosfera peculiar que questiona o espectador a respeito da sua própria veracidade – há, aqui, uma correlação entre sonhos e realidade.

*  Filme de 10 a 14 minutos contido em um único rolo de filme; era uma prática regular durante o auge da popularidade do cinema mudo.


Partindo pra uma análise das partes do curta…


O elemento que abre o filme é o som do metrô correndo em seus trilhos; esse passeio fantasma no túnel é logo visualmente apresentado. Há, também, uma espécie de beep eletrônico que acompanha o deslocamento da câmera no espaço. Esse plano é interrompido por um corte que nos apresenta o interior de um dos vagões. Passageiros vestindo roupas cinzas neutras movimentam-se em uma espécie de transe nervoso e cansativo: não estão dormindo propriamente, contudo também não estão acordados. Nesse limbo está, inclusive, o protagonista (representado por Thom York), que se movimenta como os demais presentes. Nessa coreografia ─ que remete vagamente o uso da repetição por Pina Bausch**  ─ todos balançam em um estado letárgico: as pálpebras vibram e os pescoços giram enquanto as cabeças desabam cansadas; os corpos, por sua vez, estão imóveis. No primeiro lapso melódico, o protagonista troca olhares com seu par romântico na trama (Dajana Roncione). 

** Coreógrafa alemã; nesse momento, me refiro a coreografia Sagração da Primavera, na qual os bailarinos realizam movimentos repetitivos e angustiados

Em meio a uma batida base ritmada ─ que lembra o ritmo cardíaco ─ e outras linhas rítmicas mais agudas, a coreografia dos passageiros se desenvolve ríspida. Os movimentos realizados conversam entre si, são muito parecidos, entretanto não estão sincronizados. O sono e o cansaço são elementos explícitos na gestualidade da cena. A câmera se move lentamente com a multidão, mas não realiza planos muito longos. Ao invés disso, enfatiza a repetição do andar em uníssono dos indivíduos, paralela a pulsação musical. O enquadramento é variado e frequentemente enfatiza os movimentos de braços e pernas, deixando a cabeça dos corpos de fora. Como consequência desse jogo de enfoques, confere-se um efeito visual que prioriza a criação de novos desenhos a partir da coreografia dos bailarinos, e não a obtenção de um panorama geral das ações em si – o que seria mais eficiente do ponto de vista narrativo.

Em meio ao frenesi dos corpos descendo na estação de metrô, o protagonista percebe que a moça observada anteriormente esquecera sua maleta e vê nisso uma oportunidade de reencontrá-la; na tentativa de devolvê-la, tenta burlar o fluxo dos demais passageiros em direção a saída da estação. Ressalto aqui a cena na qual todos sobem a escada numa movimentação coordenada e com uma estética geométrica, menos o próprio Thom, que busca avançar mais do que os demais, contudo sem mudar nada realmente – como uma personificação da ansiedade. Ademais, é interessante perceber como a movimentação dos bailarinos, durante todo esse trajeto, é marcada principalmente por um bater de cabeças que, além de demonstrar cansaço, remete a um sinal de concordância – contudo cuja empolgação não é nem presente, nem sincera. Esse fato conversa com a letra da música que assume o plano sonoro dessa primeira parte, Not the News***, questionando quem são essas pessoas, a individualidade relativa das mesmas, e a frieza do mundo – principalmente no âmbito da sociedade industrial massificada.

***As músicas do filme são parte do álbum do cantor, Thom Yorke, cujo nome é o mesmo do filme. As letras serão colocadas ao final desse texto :)


Há, nesse momento, um empecilho protagonista na sua missão de devolver o item perdido: uma catraca. Ao tentar sair da estação, Yorke é o único incapaz de passar pela roleta. Como quem adormece, ele é “sugado” ao fundo da estação, na qual um cartaz pergunta “O que acontece com seus sonhos?” (originalmente: What happens to your dreams?).  Nisso, a maleta fora perdida... mas sua vontade de rever a moça não havia sumido com ela. Sendo assim, o Thom se joga para além da catraca.

Aqui tem início o interlúdio entre a primeira e a segunda parte: há uma mudança drástica no cenário e na atmosfera onde se encontra o protagonista, contudo a música segue a mesma, conferindo unidade aos momentos. O novo ambiente pode ser compreendido como o mundo dos sonhos. Thom se encontra em meio a projeções psicodélicas nas paredes, num local não tão bem definido quanto a estação de metrô, porém igualmente concreto: um mundo cinza que remete a falésias, com marcada iluminação cênica colorida – nada naturalista. O protagonista segue procurando a maleta, indo frequentemente em direção à fonte de luz artificial – a qual não conhecemos/vemos –, mesmo que isso signifique ir contra o sentido seguido pelo corpo de baile.

Dois elementos marcam o início da segunda parte: a mudança de música e de cenário. O protagonista se encontra espiando sobre o que parece ser um horizonte branco que, conforme o jogo de luz se desenvolve, revela a maleta anteriormente. Nesse novo ambiente a gravidade funciona de maneira peculiar: percebemos esse fato conforme os bailarinos surgem, avançando em direção a Yorke. Os dedos de seus pés estão sempre colados no chão, entretanto seus corpos se movem suspensos no ar, inclinados em uma angulação aguda. A performance que ocorre com essa nova música, Traffic, é chamada Skid. A movimentação dos dançarinos é sincronizada e alternada enquanto os corpos aparecem e desaparecem, deslizando da existência para a ausência. A câmera, nesse âmbito, tem um papel imprescindível: estando paralela ao chão, torna imperceptível a inclinação de 34º**** dessa superfície  – fato que permite os dançarinos de realizarem os movimentos exagerados de torso ao passo que dão a ilusão de flutuarem ao mesmo tempo que escalam. 

**** A inclinação, aqui, imita a aceleração gravitacional da Terra; é uma marca característica no trabalho do coreógrafo Damien Jalet.

É importante ressaltar, inclusive, o modo como o enquadramento, em consonância a iluminação cênica, amplifica os resultados estéticos nesse momento: alternando seu ponto de vista entre a frontalidade e a lateralidade perante os bailarinos (quando está paralela ao chão) e, também, a câmera alta total – enfatizando o jogo cromático entre o chão branco, os corpos escuros e suas sombras negras enquanto todos se movem como engrenagens – consegue-se certa união entre esses elementos repetitivos. Os corpos, nesses planos, são reduzidos a partículas que quando somadas compõem a movimentação de um organismo inteiro. Em alusão à letra da música, esse fato alfineta o mundo corporativo: um sistema que se alimenta dos indivíduos, sendo que poucos tem chance de resistir ao sufoco consequente, passando incólume a ele.


O cenário como um todo convulsiona, assumindo diferentes formas conforme a iluminação nos bailarinos permite: um lugar de encontros, desencontros e até tensões. Assim, nos remete a diferentes pulsões humanas e com a fugacidade das mesmas perante um grande grupo – a própria sociedade. Mesmo determinado a realizar suas vontades individuais, Thom é incorporado a coreografia, escalando e deslizando com os demais. Contudo, em dado momento ele aceita essa nova realidade e para de lutar contra ela, fica à mercê dos fatos: é quando o protagonista senta de olhos fechados, sozinho, enquanto recortes de jornais voam ao seu redor – uma clara alusão ao excesso de informação que bombardeia diariamente os indivíduos ao mesmo tempo que banaliza os fatos em si.

Novamente, a transição entre as partes do curta se dá com o protagonista deslizando para outro ambiente e com a troca de músicas. Por um breve momento, ele some de cena e só reaparece com a sobreposição dos planos. Agora, ele se encontra deitado no chão, acordando (ou adormecendo?) novamente em um cenário objetivo – real: um beco por onde voam os mesmos recortes de jornais. Logo percebemos a presença da mulher misteriosa, o que nos aproxima ao máximo de um ponto narrativo linear. A música que conduz o desenvolvimento dessa etapa é Dawn Chorus, que, além de contar com uma linha melódica menos frenética do que as primeiras, traz em sua letra um desassossego ou negação com a maneira como a vida foi, bem como uma expectativa positiva em relação a um possível recomeço.   Conversa com essa perspectiva o fato de ser o primeiro momento em que conferimos um cenário aberto e iluminação natural. O encontro das duas almas perdidas finalmente ocorre; os protagonistas se unem em uma coreografia circular, cuja acentuação difere profundamente das anteriores. Agora, tanto o casal principal quanto os figurantes – que também estão em pares – se movem de maneira fluida e serena, como se os problemas estruturais da sociedade em nada afetassem o presente momento. A iluminação amarelada dos postes de luz entra em conformidade com o lilás do céu, complementando-se assim como as personagens. É, inclusive, a primeira vez no filme em que o protagonista se desloca em conformidade com o mundo que o rodeia: no mesmo sentido do trem ao fundo e dos demais casais.

Encaminhando a história para o seu final, todos os casais entram em um trem, remetendo-nos ao início do curta – como quem reinicia um ciclo, contudo de forma diferente: não estão mais sozinhos. Por fim, o protagonista finalmente adormece com tranquilidade, com a luz do sol encontrando seu rosto ao som do canto de pássaros – que segue durante os créditos.


Tudo nesse filme é subjetivo, a começar por não termos certeza se os momentos são reais ou apenas sonhos do protagonista – visto que essa temática é citada indiretamente em diversos momentos no decorrer da trama. Contudo, o processo de união é inerente a alma de qualquer um – daí o título, versão latina de “alma” – e pode ser percebido no filme em dois eixos centrais: o percurso do próprio personagem até o encontro com seu par, da solidão para a união; e o desenvolvimento linear da linguagem corporal, da dureza de quem rasteja e convulsiona ao estado de leveza daquele que gira. Concluindo, Anderson e Yorke partiram dos sonhos como um meio necessário de processar a insanidade ao nosso redor e compreender como acessar essa espécie de “porto seguro” intrínseco na alma de cada um.

Dia 14: Texto

BIBLIOGRAFIA

Dia 14: Texto
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